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terça-feira, 2 de outubro de 2012

ESPECIAL: Carandiru, 20 anos depois - A real história do Massacre de 111 homens

Do Última Hora SP - 06h:17 - Atualizado às 06h:23
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A manhã daquela sexta-feira estava como as outras. Funcionários da carceragem trocando de turno por volta das 7h da manhã, PM´s da muralha tomando seu posto e principalmente tranquilidade nas galerias e pavilhões da Casa de Detenção Doutor Flamínio Fávero, Próximo das 11h, o então diretor geral da casa, Ismael Pedrosa recebia novos inquilinos. Ditava às regras, o que se podia e o que não se podia fazer no ambiente. Como a maioria estava ali pela primeira vez, os ajudava a manter a boa convivência com os lideres e com aqueles que estavam há tempos confinados no local. Naquele momento, fora das salas de palestra, o pátio estava tomado de detentos. Naquele começo de tarde ensolarado em São Paulo, no campinho de barro, ocorria uma partida de futebol, era final de um campeonato entre os presidiários. Próximo dali, dois “moradores” acertavam as contas de uma desavença iniciada semanas antes. Segundo publicação da Revista Já, de 27 de setembro de 1998, do extinto jornal Diário Popular, quatro meses antes, Antônio do Nascimento, o Barba, à época, com 36 anos, condenado por latrocínio (roubo seguido de morte) fora avisado por Luís Tavares, o Coelho de 23, que sua “mulher” – ou seja, seu parceiro sexual passivo era um estuprador. A acusação era gravíssima, pois presos não toleram crimes sexuais.

                                                          Foto: Ormuzd Alves/Folha Imagem
Um briga que só envolveria duas pessoas, acabou ecoando pelos quatro cantos da penitenciária quando na manhã daquela sexta-feira, 2 de outubro de 1992, Barba resolveu acertar sua diferença com o desafeto e, deu-lhe um soco no rosto. O agredido não poderia deixar barato, perderia o respeito daqueles que considerava serem seus aliados. A notícia do início da briga correu rápido pelas galerias do pavilhão 9; uma briga ou confusão poderia encerrar a entediante vida de 7 mil homens confinados da forma mais desumana pelo Estado.

Coelho reagiu, e machucou bastante Barba. Agora lhe restava o castigo e as punições dos agentes penitenciários. Subiu à sua cela, trocou de roupa e quando se preparava para se entregar, veio a notícia que a turma de Barba queria pegá-lo. A desinteligência entre os dois homens virou um verdadeiro acerto de contas entre dois grupos com mais ou menos 50 homens de cada lado. O aviso aos funcionários: “Sai fora, que isso é briga de preso.” A maior prova quanto à veracidade ao aviso é de que não foram feitos reféns.

                          Foto:Heitor Hui/2/10/92/AE
Vendo a movimentação intensa no Pavilhão 9, Pedrosa, diretor experiente, não se desesperou, sabia que podia resolver a situação na base da conversa ou com algum acordo. Nem deu tempo de negociar. Pouco antes das 13h:40 policiais do batalhão vizinho ao Complexo do Carandiru já estavam posicionados no portão principal. Talvez alertados pelo alarme disparado por algum guarda da muralha ou pela fumaça que saia pelas janelas do pavilhão. Com os chamados de reforço via rádio, a imprensa ficou sabendo e correu até a Avenida Cruzeiro do Sul, na zona Norte, para saber o que ocorria naquela sexta-feira, véspera de eleições municipais. Com medo de uma possível invasão, parentes e amigos de detentos começaram a chegar aos montes. Vindos de todos os bairros de São Paulo, às 14h30 obrigaram os PM´s do policiamento de área a fecharam o quarteirão da Cruzeiro do Sul, entre as avenidas Zachi Narchi e General Ataliba Leonel.

No Pavilhão 9, a briga já terminara e os presidiários que pelas frestas viam a movimentação dos familiares e o grande contingente policial preparavam a abertura dos cadeados trancados por eles horas antes. O medo dos 2.069 presos da ala era por uma invasão da Tropa de Choque. Eram 15h quando junto ao coronel Ubiratan Guimarães, comandante de Policiamento do Metropolitano chegaram os primeiros homens de uma tropa de elite. Eram homens da Rota, que a bordo de suas veraneios passavam pelo meio dos parentes de presidiários que tomavam a frente da Casa de Detenção. Com cavalos de pau e manobras bruscas atormentavam e amedrontavam ainda mais os parentes, que a essa altura, já enfrentavam diversos conflitos com os PM´s armados de escudos, cassetetes e cachorros.

Como num toque de mágica ou pura pró-atividade às 15h15, 345 PM´s se espremiam na Avenida Cruzeiro do Sul. Aguardando ordens do coronel Ubiratan, os respectivos tenentes-coronéis das unidades e seus soldados, sendo 51 homens do 1º Batalhão de Choque, a Rota, mais 125 policiais do 2º Batalhão, responsável por distúrbios civis ou praças com grande quantidade de pessoas e mais 74 PM´s e 13 cães do 3º Batalhão encerram a Tropa de Choque. Havia ainda mais 25 homens do Grupo de Ações Táticas Especiais, o GATE, além de 16 policiais do Comando de Operações Especiais da PM, o COE, grupo de elite especializado em atuar em ambientes fechados ou de extrema dificuldade, como matas ou morros.

Segundo fontes da época, a maioria dos policias estavam apavorados, diziam que os presidiários tinham armas e principalmente seringas com sangue infectado. Do outro lado, os detentos esperavam pelo pior, sabiam que não podiam enfrentar aquele grande arsenal. Para dificultar a entrada da tropa, armaram uma barricada no pátio. Jogaram óleo de cozinha nos degraus. Ainda assim, esperavam que os PM´s não invadissem. Enquanto Pedrosa conversava via megafone com os presos, o então secretário de Segurança Pública Pedro Campos retransmitia ao coronel Ubiratan a ordem do então governador Luiz Antônio Fleury, que no momento almoçava na cidade de Sorocaba, interior paulista. “Vocês tem autorização do governador Fleury para entrar”. Segundo matérias publicadas na época pela imprensa. Pedrosa foi atropelado pelos PM´s. Ali começava a maior operação em presídios da história brasileira.

A Tropa de Choque já estava preparada, os oficiais tinham em seu poder submetralhadoras Beretta nove milímetros e fuzis Parafal 7.62. Ambos têm em sua cinética, com apenas um click, a opção de tiros normais ou intermitentes, ou seja, em forma de rajadas. Os homens do segundo escalão tinham a tiracolo espingardas calibre 12 e os soldados levavam consigo revólveres calibre 38.

Às 16h eles tomam a frente do Pavilhão 9, uma enxurrada de facas artesanais, as “naifas” na gíria penitenciária, estiletes e alguns canos de PVC quebrados do encanamento são atirados pelas janelas. Para a PM eram os presos os atacando, mas na verdade eram os presos de desfazendo de tudo que pudesse ser identificado como arma. Como a maioria dos PM´s nunca tinha enfrentado uma revolta e até mesmo debutavam na Casa de Detenção entenderam aquilo como uma afronta. O próximo passo foi chamar um dos bombeiros que estava próximo e solicitar que com o auxilio de um alicate hidráulico arrombasse o grande cadeado posto no portão principal do pavilhão.

                                                                                Foto:Folha Imagem
Logo após os primeiros passos, os PM´s escorregam. Era o óleo jogado pelos presos horas antes.  O horário certo da entrada é por volta das 16h20. De acordo com a Revista Já, na edição publicada em 27 de setembro de 1998, um gritou ecoou pelo Pavilhão 9: “Aqui é a morte! Preparem-se para morrer!” A partir daí rajadas de metralhadora foram ouvidas; gritos de ambos os lados. Alguns presos aguardavam nus, era uma forma de não mostrar resistência. Os que ainda ficavam no corredor eram exterminados a base de chumbo que saia do cano dos revólveres. Os PM´s adentravam nas celas; ordenavam aos detentos que deitasse no chão, a essa altura, úmidos pela água que vazava do quebra - quebra e pelo sangue que jorrava das feridas provocadas pelas balas.

Com a falta de notícias, parentes de detentos e os PM´s preteridos da ação in loco entravam em confronto a todo instante na Avenida Cruzeiro do Sul. Já na parte de dentro quem havia escapado das balas, das mordidas dos cães e de sessões de espancamento no corredor polonês era obrigado a carregar os feridos para a enfermaria e os cadáveres para o grêmio recreativo; faltou espaço. Às 17h a operação dentro do Pavilhão 9 está encerrada. Não há mais focos de incêndio ou qualquer tipo de rebeldia. As primeiras ambulâncias levando presos feridos começam a deixar as dependências do Carandiru rumo ao Pronto Socorro de Santana. Do lado de fora chegam informações desencontradas a familiares e jornalistas. Sem mencionar feridos, o número que se tem é de oito mortes. aquela sexta-feira terminaria com o número irreal de oito mortes, sendo oito presidiários socorridos ao PS de Santana. A manhã de sábado, 3 de outubro, mal tinha iniciado e novos protestos aconteciam na porta do Carandiru. Parentes de presos que tinham adormecido na rua e outros que acordaram bem cedo para estarem ali, faziam de tudo para obter informações do que ocorrera no dia anterior. Vários repórteres chegavam ao local com o amanhecer do dia. Suas pautas eram levantar o que realmente aconteceu e principalmente buscar informações verídicas sobre os fatos. Circulava em toda a cidade relatos que as oito mortes eram uma farsa e que teriam mais vítimas. As dúvidas vinham da grande quantidade de “rabecões”, ou seja, carros do IML nas cores preto e branco que entravam e saiam a todo instante na madrugada. Naquela tarde de sábado era data de eleições municipais no país. Em São Paulo a disputa estava acirrada, inclusive com candidatos aliados ao partido do governador; mencionar qualquer tipo de dado ou notícia referente a uma desastrosa ação da PM poderia acarretar em prejuízos. Em entrevista ao UHSP, em janeiro de 2012, o jornalista Inácio França, repórter do jornal Diário Popular e escalado a cobrir o dia posterior a ação da PM, nos conta como foi descoberta a quantidade de vítimas.

  • Três ou quatro repórteres concluíram que não dava para apurar tudo sozinhos, que não dava para contar com as reduzidas equipes de plantão e muito menos esperar pela sinceridade do governo. Resolvemos contar os mortos onde eles deveriam estar: nos vários IML´s espalhados pela cidade. Eu fui para o posto da zona Leste. Cada um foi para um lado. No posto do IML no bairro de Artur Alvim, consegui entrar. Lá estavam os cadáveres enfileirados dos presos fuzilados pela PM. Havia mais de vinte corpos. Uma hora depois, nos reencontramos diante do portão do Carandiru e fizemos a contagem: vinte e poucos da Zona Leste mais “x” do IML do Hospital das Clínicas mais “y” do posto da Zona Sul, total: 108. Espantados, tínhamos certeza da farsa de Fleury e do seu “cupincha” Pedro Franco. Como não há furo coletivo e que a verdade apareceria ao longo daquele mesmo dia, passamos o número para a rádio Jovem Pan.
                                              Foto: Internet
O domingo, 4, iniciou já com os números fechados daquela meia hora fatídica da tarde de sexta-feira, 111 homens executados pela policia militar. A palavra massacre nunca foi mencionada pelo governo estadual e principalmente pelos comandantes de tal operação. Nem o governador Luiz Antonio Fleury, o secretário de segurança pública Pedro Campos e muito menos os inúmeros oficiais que adentraram ao Carandiru utilizaram o termo. Quando questionado da chacina Fleury se esquivou dizendo que não era secretário, numa clara referência ao chavão “tirando o corpo fora”, passando a responsabilidade das declarações ao chefe imediato dos PM´s. Os funcionários do quadro do IML que estavam de folga foram chamados as pressas, todos os que tinham condições de trabalho retomaram seus postos devido à grande carga de trabalho. Os corpos tinham pintados a tinta números, que seriam utilizados para identificação. Como a maioria estava em estado deplorável, com tiros no rosto, marcas de bala que causaram grandes estragos, e alguns com até mais de dez tiros, os funcionários abortavam os parentes que queriam entrar no posto. Mesmo sendo direito do cidadão, os servidores do IML tinham compaixão pelos parentes sabiam que cenas como aquelas provocaria sequelas pelo resto de suas vidas. Corriam para retocar ar marcas de bala e sofrimento estampada no rosto dos mortos. Funcionários do IML já acostumados a verem cadáveres choravam ao verem os corpos. Ainda no domingo, o IML contava 112 corpos de vitimas do Carandiru em suas dependências, eram 68 no IML Central, dez na zona Leste, 17 na zona Oeste e outros 17 na zona Sul.

Os primeiros corpos começaram a ser enterrados na tarde de segunda-feira, 5, em covas rasas, lado a lado uma das outras no Cemitério de Vila Nova Cachoeirinha, na zona Norte. Enquanto parentes enterravam seus entes o governo ainda batia cabeça em confeccionar a lista oficial dos 111 detentos executados. Isso só foi ocorrer no final do dia seis de outubro.  Em 2012, ano este que completa a dolorosa marca de 20 anos do episódio, os familiares aguardam pelas indenizações trabalhadas pela procuradoria; ninguém foi preso, e, nem sequer verdadeiramente condenado. O comandante da ação coronel Ubiratan Guimarães foi afastado uma semana depois do ocorrido de seu cargo. Em 2001 foi acusado de homicídio e condenado, em junho, há 632 anos por 102 das 111 mortes (seis anos por cada homicídio e vinte anos por cinco tentativas de homicídio). Não ficou um dia preso, sendo absolvido pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça. Ubiratan foi assassinado em setembro de 2006, com um único tiro abaixo do mamilo esquerdo. Logo após sua morte, no muro do prédio onde morava foi pichado "aqui se faz, aqui se paga", com referência ao Massacre do Carandiru que o coronel coordenou. Exatos 10 anos após o extermínio, em outubro de 2002 o Complexo do Carandiru começou a ser esvaziado sendo implodido quase que totalmente dando vida ao hoje Parque da Juventude.  

Próxima publicação do ESPECIAL: Carandiru, 20 anos depois - O perfil dos executados

*Fotos retiradas da internet. Folha Imagem e Agência Estado

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